segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Luís Castro avalia evolução da cobertura televisiva em casos-sensação

“Cada vez mais é a notícia que encontra o jornalista na Redacção e não o repórter que a fareja e a investiga em paz”


Com o entusiasmo de quem não se cansa de aprender, Luís Castro, jornalista da RTP desde 1992, gosta de questionar valores, emoções e práticas de pesquisa na transmissão de factos. Escrutinados todos os dias, como no “Caso Maddie”, tema do seu livro “Por que adoptámos Maddie”, os repórteres podem olhar de frente as armadilhas do mediatismo excessivo também com esta sua ferramenta de reflexão.
Na sede RTP em Lisboa, entre câmaras, holofotes, microfones, computadores e televisões alinhadas, num constante movimento, típico da preparação de mais uma emissão em directo do “Telejornal”, do qual Luís Castro é coordenador desde 2004, responde a diferentes necessidades. A competição por um maior número de audiências, o tempo que é pouco, a guerra mediática gerida por interesses contraditórios que ergueu altares e cavou trincheiras a nível internacional, e uma tendência para o surgimento de opções individuais no acto de fazer informação e discutir opinião obriga-o à reflexão. Para se salvar, para se conter, para perceber melhor um mundo que abraça uma revolução tecnológica onde a manipulação da opinião pública marca todas as agendas.


No seu livro refere que o caso Maddie tinha todos os requisitos de noticiabilidade (“rapto, mistério, pedofilia, possibilidade de morte, criança bonita, pais com estatuto social, estrangeiros, de férias, católicos, fé e emoção, romarias de curiosos à Praia da Luz, polícia, assessoria profissionalizada, envolvimento político”). Foram estes ingredientes que tornaram esta história diferente?
Não só, mas também. Quando decidimos se o assunto deve, ou não, ser noticiado existem critérios. Uns são universais, mas cada órgão de comunicação social privilegia determinados critérios. Caso contrário, todos dariam a mesma informação. Mas há mais que isso. Existem diferentes valores pessoais envolvidos. Fomos invadidos por jornalistas estrangeiros em Portugal, e tudo começa com um “bate-bate” de cinco em cinco minutos por parte da SkyNews. Nós não quisemos ficar para trás.

“Vivo estes momentos como se estivesse lá. Eu e mais umas centenas de milhões. Queremos Maddie viva e o raptor apanhado”, desabafa pelo meio do livro. Qual o impacto destas emoções e a influência das mesmas quando o jornalista informa?
Todos nós temos sentimentos e valores, somos humanos. Como pais, valorizamos mais o papel de uma criança no seio familiar e a sua perda sensibiliza-nos. No “Caso Maddie”, a tendência foi noticiar e cada vez mais. Percebemos que o público queria mais deste caso, e tínhamos de ter em conta não só o que o público queria, mas também o que na realidade o Telejornal deve dar. Muitas outras notícias, que teriam tido visibilidade, deixaram de o ser por causa do “Caso Maddie”.

Até que ponto estas decisões podem contaminar a transmissão dos factos e manipular os espectadores?
As nossas emoções interferem nas nossas decisões. Temos valores culturais e afectivos. São os nossos códigos que nos levam a escolher de acordo com pessoas, acontecimentos ou situações. Questionamo-nos frequentemente sobre aquilo que iremos noticiar. De certa forma manipula, porque o trabalho que é noticiado já vai direccionado consoante as decisões editoriais sobre esse caso. Se um determinado assunto merecer apenas cinco minutos e lhe forem dados quinze, está-se a manipular a opinião pública, usando-a para fazer aumentar as audiências.

É possível ser imparcial e equidistante em situações dramáticas como as presentes na Praia da Luz?
O “Caso Maddie” é paradigmático. Como jornalistas partilhámos também a dor daqueles pais e, a certa altura, quisemos dar uma história com um final feliz. Quando percebemos que os pais iam ser constituídos arguidos, sentimo-nos traídos, o que fez com que mudássemos o nosso comportamento. Em vez de partilhar a dor começámos a atacar os pais. De um momento para o outro, os pais passaram de “bestiais a bestas”, ainda que o facto de serem constituídos arguidos não lhes impute culpa. Nós não aprendemos com o “Caso Casa Pia”, pode ser que agora possamos aprender algo com este caso.

Assume que os jornalistas não são “apenas narradores de factos, mas também produtores de opinião”. Qual o perigo desta sua afirmação?
Por exemplo, em 100 notícias só são escolhidas 30 para serem noticiadas no telejornal. Só por aí já se produz opinião, porque estamos a condicionar ao público a informação que escolhemos dar. Estamos a alienar as pessoas quanto aos outros assuntos, porque achamos que sabemos o que é mais importante. Em Portugal, quatro milhões de telespectadores portugueses percepcionam e interpretam os mundos de acordo com o que vêem no telejornal. Têm poucos hábitos de consulta de jornais, Internet e de ouvir rádio, que só são praticados por grupos mais urbanos e jovens.

Neste caso existiam muitas fontes de informação, sendo maioritariamente pouco fidedignas. Como é possível avaliar a importância e a verosimilhança das mesmas num curto espaço de tempo?
Antigamente uma reportagem fazia-se em dois dias. Agora fazemos duas num dia. Há menos tempo para interpretar, questionar e cruzar fontes. Quase que nos limitamos ao que uma fonte nos diz e, assim, somos facilmente manipuláveis. Os jornalistas portugueses foram manipulados pelas informações que vieram “por baixo da mesa” da PJ, que as libertava com o sentido de influenciar e manipular em defesa aos ataques jornalísticos dos ingleses. E qualquer fonte tem sempre uma pretensão. Estamos a perder a veia jornalística de sair da Redacção e ir à procura da notícia. Cada vez mais é a notícia que vem ter com o jornalista à Redacção. Tudo isto influencia a qualidade do jornalismo.

Quais foram as consequências resultantes de uma competição entre os jornalistas portugueses e os jornalistas ingleses e o efeito da mesma na opinião pública?
Foram cavadas trincheiras. A certa altura os pais alimentavam a imprensa inglesa na sua guerra contra a polícia portuguesa e a polícia portuguesa alimentava a imprensa portuguesa na sua defesa e ataque à imprensa inglesa e aos pais. Gerou-se uma guerra de interesses em que usámos e fomos usados. Uma guerra mediática em que uns acusavam os outros de não usar mecanismos de seriedade na cobertura do caso. Alguns jornais tinham todos os dias o “Caso Maddie” na primeira página. Até o público fazia parte dessa manipulação, porque comprava os jornais e fazia aumentar as audiências, fomentando assim este crescimento e excesso de mediatismo.

Afirma que “a necessidade de continuar a falar pode fazer com que o jornalista acabe por entrar no campo da especulação ou comece ele próprio a formular questões às quais tenta responder”. Em que gaveta fica a objectividade jornalística quando se tem que encher expectativas?
A objectividade jornalística só existe enquanto princípio de honestidade. Todos nós olhamos para um acontecimento à luz dos nossos valores, como tal é subjectivo. Se permitirmos ou obrigarmos o jornalista a ficar muito tempo em directo e este não tiver capacidade para dar a volta ou matéria nova, ele vai começar a recapitular e a reflectir, entrando num campo mais minado da manipulação da opinião pública.

Sandra Felgueiras foi a única repórter das três televisões que acompanhou sempre este caso. Quais as vantagens desse acompanhamento ininterrupto?
Torna-se mais credível aos olhos dos telespectadores, até porque é uma das melhores jornalistas que cá temos, com uma grande capacidade de interpretação. A Sandra, quando falava em directo, sabia do que estava a falar e não derivava daquilo que realmente era a notícia. Era a jornalista que mais facilmente chegava aos pais de Madeleine McCann e aos investigadores da Polícia Judiciária. Tinha bons contactos e há que aproveitar esta proximidade.

A entrevista da RTP, feita ao casal McCann por Sandra Felgueiras, foi considerada decisiva. A comunicação social interfere na investigação criminal?
Determinados comportamentos dos pais foram visionados pela Polícia Judiciária. Pela primeira vez foram feitas questões de fundo aos pais. A entrevista foi muito bem preparada, não só pela jornalista como pela coordenação e direcção. Decidimos fazer as perguntas necessárias e para as quais as pessoas ainda não tinham obtido respostas.

Confessa que teve vontade de convidar um neurolinguísta para descodificar o comportamento dos pais de Madeleine, mas que não o fez por achar este impacto perigoso numa audiência mal preparada para interpretações inesperadas...
Eu tirei um curso de neurolinguística há uns anos e logo por aí é algo que me é muito próximo. A neurolinguística descodifica alguns comportamentos humanos e havia ali mais do que atitudes que mereciam ser analisadas. Achei que os portugueses não estavam preparados visto que era um caso ainda muito recente, iria influenciar a opinião pública e resultaria num despoletar de sentimentos, induzindo mais julgamentos de opinião quando se pretendia apenas contextualizar.

Consultei as suas fontes e reparei que são essencialmente ligadas à RTP. Foi uma questão de proximidade ou a principal dificuldade sentida neste projecto?
Sim. Além de que não quis fazer uma crítica aos outros telejornais pois não domino os processos de decisão editorial tida nos mesmos. Cada um tem a sua linha editorial que tem de ser respeitada.

Qual a principal dificuldade sentida no desenvolvimento deste projecto?
O livro foi escrito num mês. Nesse mês vi todos os telejornais de meio ano, fiz vinte e três entrevistas, consultei toda a informação que consegui reunir na imprensa portuguesa e inglesa, o que faz com que não seja possível uma maior profundidade ...mas é uma leitura pessoal que visa a reflexão dos jornalistas, principalmente, face aos erros cometidos com este caso. E sabe-me bem que alunos de jornalismo de diferentes universidades consultem este livro como mais uma ferramenta de estudo, o que me dá mais prazer que saber que foram vendidos dois mil exemplares.

Ainda vivemos muito do que vemos na televisão?
Sim, principalmente a população de uma faixa etária mais avançada. Contudo, os mais novos já têm outras ferramentas que lhes permitem percepcionar aquilo que se passa no mundo, principalmente através da blogosfera. A Internet será o futuro da comunicação e nós cá estaremos para integrar esse desafio.


Num país onde cerca de quatro milhões de habitantes dependem da televisão como instrumento de percepção dos acontecimentos a nível mundial, o rigor jornalístico como princípio ético pode fazer toda a diferença. A importância da evolução tecnológica não pode ser estranha ao passado e à reflexão e reconhecimento de padrões de serviço público como a isenção, a equidistância e a comprovação dos factos. E no caleidoscópio do mundo de hoje, a mediação dos jornalistas pode ser a bóia de salvação de muitos. Porque mais velhos, mais pobres, mais excluídos.


(c)Bruno Figueiredo Moutinho 2008

Sem comentários: